Uma promessa

Felipe Hensil
9 min readJul 15, 2021
Photo by Adam Wilson on Unsplash

De campos verdes vivos brotaram ali miséria e angústia. Uma praga sem nome se pôs sobre a vila e afugentou todas as famílias menos uma, que sobrevivia de ignorante esperança. O pai, no incansável cavoucar da terra infértil, em toda a imensidão agora amarelada, deparou-se com três espigas de milho secas. Se houvesse misericórdia do Senhor, o homem nada encontraria.

Voltando ao lar no fim do dia, após passos vagarosos, viu quatro pares de olhos sorrirem com seu retorno. As crianças descarnadas se aglomeravam perto do fogo. Três meninas e um menino. À exceção da mais velha, nenhuma havia vivido mais que uma década. O menorzinho brincava com a fome e alimentava uma boneca de palha, imaginando uma mistura qualquer, da qual também se servia. Sem muito alarde, o pai caminhou até a panela repleta de água turva que fervia no fogo e depositou ali um de seus achados. Fitou as chamas e fez uma oração silenciosa e breve, na qual agradecia pelo alimento e pela morte da esposa, vítima de mal súbito. Sabia que se estivesse ali, ela morreria outras mil vezes antes de finalmente sucumbir.

Já não havia lugar para teimosia. Ao acordar, o patriarca por fim decidiu este ser o último dia de sua família ali. Abandonariam tudo o que tinham e o túmulo de Tereza para tentar a sorte em outro canto. Antes da debandada, contudo, o homem saiu em busca de provisões para a grande viagem. A mais velha, agarrando-se ao instinto herdado de ancestrais daquela terra, farejou um sei lá o que no vento e tomou as mãos do pai entre as suas. O fique não foi dito. Não foi preciso. Não adiantaria. O homem saiu determinado, disfarçando a aflição em passos duros e palavras miúdas: cuide deles.

***

O dia chegava ao fim, e o homem continuava a vagar. A espingarda, a tiracolo, foi usada pela última vez há meses. Entre as árvores cadavéricas e contorcidas da região não havia bicho algum. Por Deus! Não se ouvia som algum ali. Então parou, deu meia-volta e seguiu em direção à casa. Nada era mais importante que a vida dos filhos. Sofreriam durante a viagem, mas as duas espigas restantes, racionadas com cautela, talvez os levariam a algum lugar com melhores condições de sobrevivência. Voltariam a plantar feijão e milho. Com sorte, depois de algum tempo, poderiam criar algum animal. Venderia a espingarda e seu esforço, pensou. Nada mais o faria permanecer ali… Foi quando ouviu. Em sua direção vinha vindo um homem curvado, puxando uma carroça maltratada por cupins.

— Só estou de passagem, meu bom homem. Deixe-me ir, disse, fitando a arma do patriarca.

Você é a primeira alma que vejo faz meses, respondeu o pai incrédulo.

E há de ser assim, disse o carroceiro.

Vou-me embora com o nascer do sol. Buscarei minha família e deixarei este inferno. Boa viagem, meu bom senhor, falou o pai, seguindo seu caminho.

Será uma dura viagem. Como estão suas provisões? Insistiu o estranho.

O pai, desconfiado, olhou bem para aquele homem. Era velho, parecia não comer há dias. Ele não representava ameaça, a não ser para si mesmo. Tinha cabelos e olhos avermelhados, a pele vincada pelo sol e ataduras nas mãos.

Meu bom senhor, não trago comigo alimento algum para partilhar. Desta terra nada mais há para nós. Encontrei ontem, pela graça do Senhor, três espigas de milho, que deixei em casa com minha família. Agora restam duas, que serão nosso alimento durante a jornada.

Pois leve consigo isto, e tirou da carroça um bicho estranho. Parecia um leitão, mas a aparência era diferente de tudo o que havia visto. Com exceção do focinho rosado, todo o corpo era diáfano. Coube inteiro na palma da mão do velho e parecia morto. Dê a ele uma das espigas. Não posso alimentar o bicho, e temo que ele não vá resistir à viagem.

Não posso aceitar. Nem ao menos sei que animal é esse.

Tenha misericórdia, homem. Este é um animal sagrado de onde venho. Em sete dias terá o tamanho de um porco jovem bem-nutrido. Em dez sua família terá as provisões para viajar em segurança. Duas espigas não os levarão para onde querem ir. Você sabe, homem, que alguns hão de ficar pelo caminho.

Partirei amanhã. Não podemos esperar mais.

Besteira! Respondeu o velho numa súplica exaltada. Cuide dos seus. Tenham paciência por dez dias. Você e sua família terão um banquete e carne de sobra para a jornada. Talvez você até decida por continuar aqui, não? Veja bem, meu bom homem. Há esperança para esta terra. Você é a esperança desta terra.

Vencido pela exaustão, o homem apanhou a criatura das mãos do velho. O bicho emanava um calor intenso.

Não o abata antes dos dez dias. Entendeu? Dez dias, falou o velho dando as costas. Disse, ainda, sem se virar: que seu Deus lhe dê força e paciência.

***

Ao chegar em casa, viu a panela de água turva ferver no fogão. Pendurou a velha espingarda, fuçou algo perto do fogo e saiu novamente sem dizer palavra. Seguiu para o telheiro atrás do casebre. Nas mãos havia a esperança antiga, e pendurada no pescoço estava a nova, dentro de um saco de algodão. Ao retirar a criatura dali, o homem sentiu sua mão queimar. Colocou o bicho no chão de terra batida e levou a espiga que carregava à boca do animal. A coisa pareceu farejar o alimento, e se esgueirou até a espiga. Emitiu um grunhido estridente que fez o homem estremecer e largar o milho. Ele mal pôde acreditar no que via. A boca do bicho alargou-se duas, três vezes mais, e por um instante o homem achou que a coisa iria engolir a espiga inteira. Enquanto a criatura dilacerava e mastigava com som e fúria o alimento, o patriarca observou seus dentes. Finos e afiados, como milhares de agulhas que despontavam em todas as direções. O homem agarrou o próprio pescoço, no susto, lembrando que aquilo estava ali instantes atrás, e arrastou-se para fora do telheiro, com olhos fixos na cena. Enquanto comia, o bicho parecia crescer. Estava agora com o tamanho de um rato. Instantes depois inchou-se para algo como um cão. E não se moveu mais. Ao redor da criatura o ar dilatava-se com o calor que emanava de seu corpo. Do lado de fora, o homem suava frio, certificando-se mais uma vez que a grade de ferro encarcerava o animal. Seus olhos brilhavam enquanto observava o bicho ganhar forma e engordar. Por um momento, apesar do pavor do desconhecido, permitiu-se ter esperanças e acreditou em dias melhores.

De volta aos filhos, caminhou até o fogão antes de dizer, sem olhá-los, que ficariam ali por mais dez dias. Partiu a espiga de milho restante em quatro e jogou um pedaço na panela.

Vocês ficarão bem. Eu prometo a vocês. Em poucos dias vocês terão um banquete.

Mais tarde, na mesma noite, após colocar os irmãos para dormir, a mais velha veio ter com o pai uma conversa.

Porque não vamos mais seguir viagem, papai?

Não há provisões suficientes para a jornada, minha filha. É mais seguro ficar aqui. Em breve seremos recompensados. Eu prometo.

O que o senhor trouxe e levou para o telheiro?

Mostrarei a você em dez dias. Até lá, trate de não ir ou deixar seus irmão irem até o telheiro.

Dias se passaram, oito, e a comida, como era de se esperar, não apaziguou a fome da família. Entre protestos e súplicas, a filha mais velha condenou em silêncio o pai pelo sofrimento dos irmãos. Tomavam água salgada fervida com o que sobrou do milho havia alguns dias, e restava apenas um pedaço da espiga. O pai passou os últimos dias distante, entre a casa, as improdutivas buscas por alimento e o telheiro. A cada dia, a menina reparava, o homem voltava com uma nova queimadura nos braços. Em respeito ao pai, não foi ver o que havia atrás da casa. Sentia também um calafrio sempre que mirava o telheiro, algo que despertaria qualquer animal para a fuga, iminência de perigo. E o calor? O calor insuportável que tomou conta de toda a área. Por suas contas ainda estariam no outono, e o tempo deveria mudar só dali algumas semanas. Era um mau agouro. Observou seus irmãos desnudos na cama improvisada. Eles dormiam para afastar a fome. No canto da cama a boneca de palha jazia intocada. Já não havia espaço para o faz de conta.

Na manhã seguinte a mais velha acordou cedo. O pai já estava desperto, mas não havia sinal dele. Deixou os irmãos em casa e saiu em busca do patriarca, que estava no telheiro. De longe gritou:

Papai, estamos com fome!

Não venha até aqui, filha!

Foi quando a menina mirou o telheiro, e de lá dois olhos vermelhos olharam de volta. Fomefome… a coisa repetiu. Pôs-se de pé com dificuldade. Era enorme, gorda e de aspecto gelatinoso. Tinha o tamanho de um cavalo grande, mas em nada lembrava o animal. Sua pele translúcida deixava ver seus órgãos avermelhados, que se moviam dentro do corpo da criatura sem parar, como serpentes em chamas. O pai correu ao encontro da filha, que soltou um grito agudo de horror. O bicho levantou-se completamente, destruindo o telheiro. Parecia muito maior agora. Fomefome… a coisa falava. O pai abraçou a filha, incrédulo de que palavras pudessem sair da boca da criatura. Ambos viam nos olhos vermelhos da monstruosidade a ânsia por suas carnes. Os dentes emaranhados como selva de agulheiro mostraram-se para pai e filha. Num ímpeto de desejo, a coisa se arrastou como pôde em direção aos dois, mais rapidamente do que eles esperavam. Por onde andava deixava um rastro de terra queimada. Filha e pai correram, mas a criatura foi mais rápida, agarrando a dentadas a perna do patriarca.

Pegue a espingarda! O homem gritou. Sentia todos aqueles dentes rasgarem sua pele. Quando o bicho o soltou, não percebeu o que havia perdido. Foi o som do criatura mastigando sua perna que o fez entender o que aconteceu. Ouviu seus ossos sendo triturados na boca da coisa. Seu sangue escorria e manchava o corpo do monstro, que engolia a carne do homem. O patriarca deu um grito de dor e medo, e levou as mãos ao membro que já não estava lá. Em sua frente, numa espécie de êxtase, a criatura se contorcia, crescia, expandia-se como um balão. Seu rosto mudou, e agora o homem conseguia ver claramente. A face do monstro era como a face do carroceiro que havia encontrado dias atrás. Desconfortavelmente humana, apesar de todo o resto. De uma fenda no pescoço da besta surgiu outra cabeça, que se esgueirou para fora do corpo do bicho como uma serpente. O sangue do monstro escorria fumegante pelo chão e fazia o que tocasse pegar fogo. Ao mirar a nova cabeça, o homem engoliu o choro. Ele viu seu próprio rosto. Era como se o monstro o tivesse copiado. Os grandes olhos vermelhos miraram o patriarca, e da grande boca dentada do mostro com seu rosto saíram as palavras euprometo

***

A menina voltou para casa correndo. Viu os irmãos escondidos e assustados e proferiu firme: não saiam. Pegou a velha espingarda e foi ao encontro do pai. Ao sair de casa, viu a cena monstruosa. Correu até o patriarca, entregou-lhe a arma e tentou arrastá-lo para longe do monstro, mas não conseguiu. Fomeeu prometofome… O pai se desvencilhou da menina e pediu que ela retornasse à casa para cuidar dos irmãos.

Eu posso ajudar, papai.

Não. Volte!… Eu sinto muito…

Então a menina correu. O homem mirou no meio do peito do monstro e disparou. A criatura explodiu com fúria, num estrondo colossal. Seu corpo tornou-se uma bola de fogo intenso que se expandia e consumia tudo ao seu redor. O impacto da explosão atingiu a menina, que foi arremessada a metros dali. Com dificuldade, ela se levantou, virou-se e tentou encontrar o pai entre as chamas. O calor intenso que emanava da cena a impedia de se aproximar. Era como se o mundo inteiro estivesse ardendo.

***

Da janela do casebre as crianças acompanharam tudo, com medo e sem entender o que acontecia. O menorzinho, novamente abraçado à boneca de palha, tinha os olhos fixos no fogo. Sua boca salivava com o cheiro da carne do pai em chamas.

--

--