O recordante

Felipe Hensil
4 min readNov 22, 2021
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Tinha prazer em acordar antes do despertador. Nunca parou para pensar sobre isso, mas era a ideia de ter algum controle sobre o tempo que o fazia se levantar mais cedo todas as manhãs. Antes mesmo de o Sol nascer se tornava guardião dos minutos, título que exercia devotamente. Agora, contudo, colocava-se de pé por hábito, e o tempo também já não era mais o mesmo. Havia horas nos segundos, passado no presente, espaços vazios nos dias, nas noites, nas rugas do rosto. Não se tratava apenas da passagem do tempo; era mais sobre ser atravessado por ele. O homem não se lembrava de quantos dias passou ali naquele quarto. Era ainda mais difícil se lembrar de como chegou até ali.

Por fim, após o aparelho apitar, o homem se levantou, tomou um banho e pôs-se de frente ao espelho. As mãos trêmulas tentavam abotoar sem sucesso a camisa, quando um botão se soltou. Ele apanhou o objeto no ar e sorriu, surpreso com a própria agilidade. Ao revelar o botão na palma de sua mão, o homem foi consumido por um espanto, como se sem aviso um segredo fosse-lhe sussurrado ao pé do ouvido. Carregava consigo um lampejo de outra época, um fragmento de memória, e o pequeno objeto o transportou para o antes. Pôde se ver, por um breve instante, correndo pelas ruas do bairro onde morou há cinquenta, sessenta anos, talvez. Mas, da mesma forma que veio, a lembrança se foi. Ele então caminhou até a cama, com passos lentos e olhos fixos no objeto, e se sentou. A mão ainda espalmada à frente do corpo. Fechou os olhos e procurou se lembrar, e então se lembrou.

Primeiro você amarra aqui, tem que ser firme, pra não soltar, disse um garoto. Beto. Beto disse isso enquanto dava um nó com um barbante sobre um pedaço de Bombril e uma pedra. O negócio é o seguinte: você vai botar fogo na ponta aqui e rodar o barbante. Com exceção dos garotos e de uma cigarra que cantava e indicava o fim da tarde, a rua estava vazia. O menino podia ver claramente o rosto de Beto, que empolgado com a brincadeira lhe oferecia um sorriso largo parcialmente coberto pelo aparelho. Como poderia não se lembrar daquele rosto? Vou fazer pra você ver como é. Beto tirou do bolso um isqueiro pequeno e acendeu a ponta do Bombril, que brilhou chamuscado de tons laranja, e logo começou a girar a invenção. Formou-se então um círculo de fagulhas que despontavam em todas as direções. O anel de fogo iluminou a rua com intensidade violenta, num espetáculo ora magnífico, ora assustador. Por um breve instante o menino pensou em fechar os olhos, mas o amigo, como que entendendo seu medo, disse Não é lindo? No centro do círculo, emoldurado entre centelhas, Beto o observava em meio ao show de luzes.

Bom dia. Dormiu bem? alguém disse. O homem estava de volta ao quartinho. Na porta havia uma mulher alta, de cabelos presos sem muito critério. Ela o observava quieta e aguardava sua resposta com genuíno interesse. O botão, falou por fim o homem. Eu o ajudo com isso, ela respondeu, caminhando em sua direção. Fez menção de pegar o objeto, mas o homem fechou a mão em reação ao ato, comprimindo entre os dedos sua pequena máquina do tempo. A enfermeira sentou-se ao seu lado e tomou sua mão entre as dela. Ele então relembrou o círculo de centelhas, e o calor amoroso do toque e da lembrança o levou novamente a outra época.

Vamos amanhã cedo, o menino disse ao amigo. Encontraram-se atrás da igreja, logo após a missa das nove. Ambos usavam a melhor roupa que tinham, com camisas abotoadas até o pescoço. Posso ir visitar você?, falou Beto, de sorriso constrangido e recém-liberto do aparelho. O menino, num ato tão espontâneo quanto respirar, inclinou-se, beijou Beto nos lábios e recuou. Ficaram ali se olhando por um tempo, até que sorriram, contemplando o momento ora magnífico, ora assustador. Você perdeu um botão, Beto então disse, apontando para a camisa do menino. Minha mãe vai me matar, o outro falou. Toma aqui, e Beto arrancou o último botão da própria camisa e o colocou nas mãos do amigo. Ele é diferente dos outros, mas vai servir. Assim você se lembra de mim.

Beto, o homem disse, olhando nos olhos da enfermeira. A mulher se levantou e foi buscar na estante próxima à cama uma pequena caixa. Ela se aproximou novamente, colocou o objeto ao lado do homem sob seus cuidados e finalmente disse Eu sei. Vou pegar linha e agulha e já volto. Dentro da caixa havia diversos botões de cores e tamanhos variados, histórias coletadas sobre um afeto resistente aos infortúnios do tempo. O homem então ficou ali sentado, recordante, ouvindo o canto de uma cigarra distante que indicava o início do dia.

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