Amor de quinta-feira

Felipe Hensil
3 min readJan 22, 2021
Photo by Babette Landmesser on Unsplash

“Lembro um menino repetindo as tardes naquele quintal”

Manoel de Barros, O livro das ignorãças, 1993.

Às quintas eram vistos com sorriso fácil. Dia de canjiquinha. Acordo tácito entre pai e mãe: ele gostava de comer e ela gostava de vê-lo feliz. A menina, por outro lado, fazia pouco caso do almoço: amarelo demais, pastoso demais, comida de passarinho demais. “Pois compre 50 centavos de cebolinha, aquela verde, comprida”, disse mãe numa dessas quintas, “e agradeça Dona Vera pelo boldo”. Era difícil entender com todos os seus oito anos por que tinha de comer uma maçaroca amarela e cheia de mato por cima. “É cebolinha, ein! Não é cebola, não!”, gritou uma mãe segurando a cintura, desconfiada da atenção que uma criança naquela idade seria capaz de dar a uma coisa que não queria fazer.

Dona Vera morava numa casa cujo portão era vermelho, vermelho, vermelho de doer os olhos. As mães achavam a cafonice prática. Dona Vera vendia e doava todos os tipos de planta que brotavam em seu quintal, e quem não a conhecesse bastava seguir a indicação de encontrar o portão vermelho. Certamente as outras crianças da rua viam aquilo como alerta, pois a tomavam como bruxa. Apesar de velha, era comum encontrar Dona Vera zanzando por aí, de casa em casa, abelhando-se de jardim em jardim. Sempre atendia o portão com um chapelão de palha, as unhas sujas de terra e uma cara de poucos amigos, e naquela quinta-feira não foi diferente. “Minha mãe pediu pra senhora vender 50 centavos de cebola verde e agradeceu o bolo.” Foi a primeira vez que a vi sorrir.

Ela abriu o portão e indicou uma planta avultada e embonecada com flores lilás. “BOL-DO. Faz bem pro fígado, mas é ruim que só. Seu pai sabe bem.” A menina mal ouviu. “Vou panhar a cebolinha”, disse Dona Vera, que foi desbravar o verde. O barracão no fundo do quintal só era visível por causa da porta de entrada, também vermelha. Ao redor cresciam samambaias em xaxins e árvores diversas. No canto se destacava um grande pé de fumo. Em caminhos de terra mexida se viam couves, alfaces, taiobas, mostardas, almeirões, louros, tomilhos… A menina, atraída pelo aroma de toda aquela paz em clorofila, atreveu-se a entrar sem ser convidada.

Caminhou por entre folhas anônimas, algumas das quais se apresentavam pelo cheiro que deixavam em suas mãos pequeninas. Um sopro maestro iniciou a sinfonia do farfalhar vegetal, e o vento assentava lembranças para dali alguns anos. Ainda intumescida pelo todo, a menina se percebeu de olhos fechados, assustando-se, instante depois, com a presença de Dona Vera, que a observava. Nas mãos a velha tinha um maço de cebolinhas e uma cumbuca. “Não precisa pagar, mas peça sua mãe um pouco de canjiquinha pra mim.”

Depois disso não houve quinta sem encontro. Elas se reuniam cedo e se despediam pouco depois do almoço. Durante a semana a menina ainda encontrava presentes amarrados ao portão de casa, de flores vistosas, como as de maracujá e os girassóis, a frutos, como mangas e pitangas. Nenhum anônimo. Conhecia tudo como a própria Dona Vera. Sabia que a sálvia serve como chá para quem está esmorecido, além de proteger a casa contra mau-olhado, que só se pode comer as frutinhas pretinhas da erva-moura, que a peixinho da horta tem esse nome por causa do gosto, mas também faz bem para a garganta, que a flor da planta-zebra atrai beija-flores.

Da terra brotou um laço ancestral entre elas, de existências passadas, de colheitas antigas. Dois extremos de vida, semente e fruto. No dia de panhar morangos, nada foi dito, mas a menina decidiu que aquela também seria sua cor e resolveu pintar com vida todas as suas portas de entrada.

Na última vez que a mulher a viu, Dona Vera parecia dormir. As mãos descansavam em cima de seu velho chapéu de palha e um grande ramo de alecrim. Pessoas de todas as partes compareceram, mudas de Dona Vera. A mulher se despediu com um até logo, e partiu um ramo do buquê de alecrim para levar consigo. Apesar do pesar, nada poderia ser mais certo do que devolver aquela semente para a terra.

O pequeno ramo roubado cresceu, e todas as manhãs a mulher observava seu primeiro amor orvalhar pelo jardim.

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